Mundos dessemelhantes, prazeres iguais
Rodrigo GurgelReconheço que os critérios que minha sensibilidade escolhe para gostar ou não gostar de um texto são essencialmente intuitivos. Não sou um crítico literário e não guardo qualquer pretensão nesse sentido, mas aprecio perceber-me como um leitor exigente, aberto às novas experiências da linguagem, mas também um pouco conservador, pois o que eu admirava aos vinte anos – uma estética capaz de romper com a lógica da linguagem – já não me emociona mais.
Estou, assim, sempre em busca de boas histórias, do passado ou do presente, ainda que, para este leitor compulsivo, tudo seja presente, pois a leitura tem, dentre outras qualidades, essa capacidade de reinaugurar o tempo, reinstalar os acontecimentos, recuperar a ficção esquecida em algumas páginas amareladas e trazê-la para o agora, como nestes dias, quando tenho reencontrado Julien Sorel e, também, admoestado Stendhal por deixar sobre o genuflexório da igreja de Verrières o papel rasgado em que se lê o começo de uma notícia sobre a execução de um certo Louis Jenrel: um chiste desnecessário, um recurso literário menor em uma grande obra... Enfim, uma pequena implicância minha, uma de muitas idiossincrasias.
Mas tenho lido várias coisas, algumas delas decepcionantes, como O livro das ilusões, de Paul Auster, e outras que me agradam muito, como dois autores inéditos – no sentido de não serem publicados em livro –, com estilos completamente diferentes, mas cujos trabalhos são pequenos universos que bastam a si mesmos e que me ofereceram aquela sensação de completude que nasce dos textos que mesclam, na medida certa, literariedade (um conceito realmente intuitivo, concordo), linguagem apurada, concisão e um tema que, mesmo sendo aparentemente superficial, acaba revelando, nas mãos de um bom escritor, possibilidades inusitadas. E talvez essa seja a tarefa do escritor: extrair a loucura dos fatos banais, ou os interstícios que, quase sempre, nos passam desapercebidos.
Beatriz Mecozzi e Saint-Clair Stockler conseguem cumprir essa perigosa e difícil tarefa.
No site de Beatriz, na seção Rêverie, aqueles pequenos poemas em prosa não se resumem a flashes do cotidiano, mas transcendem o dia-a-dia caótico dos grandes centros urbanos, transformando-se em espelhos das relações humanas que continuam a ocorrer sob o nosso olhar entorpecido pelos outdoors. Cada uma daquelas pequenas histórias é o grito de alerta de quem quer salvar o que ainda há de humano na cidade desgovernada. Cada um daqueles pequenos textos é uma tentativa de reconstruir a parcela de humanidade que perdemos a cada investida da cidade. Beatriz pinça um momento, ergue-o diante de nós, despe-o da correria, do barulho, do fedor e da indiferença, e oferece-nos a vida em seu estado mais puro, mais simples, mais essencial.
A escrita de Saint-Clair é diversa. No conto Bicicletas, por exemplo, somos levados para dentro de um intrincado episódio, no qual emergimos do sono não para retornar ao real, mas para naufragarmos no delírio. A trama se oferece de maneira despretensiosa, mas, pouco a pouco, somos envolvidos em um longuíssimo parágrafo, cujo torvelinho de suposições nos remete a um mundo no qual sonho e realidade são indistinguíveis. O texto se desencadeia a partir do simples ato de escutar, aprisionando-nos, finalmente, em um quimérico labirinto, em um pesadelo, em uma barafunda de ruídos que nos enlouquecem.
Ler Beatriz Mecozzi e Saint-Clair Stockler é conhecer mundos díspares, talvez até mesmo opostos – e que nos completam. Eles nos levam para algum ponto além da experiência estética, do qual retornamos melhores do que quando partimos.
______________________
Rodrigo Gurgel é crítico literário.
Fonte: http://rodrigogurgel.blogspot.com/2004_06_01_rodrigogurgel_archive.html
[Publicado originalmente em Junho de 2004]