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terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Mundos dessemelhantes, prazeres iguais - Rodrigo Gurgel


Mundos dessemelhantes, prazeres iguais

Rodrigo Gurgel

Reconheço que os critérios que minha sensibilidade escolhe para gostar ou não gostar de um texto são essencialmente intuitivos. Não sou um crítico literário e não guardo qualquer pretensão nesse sentido, mas aprecio perceber-me como um leitor exigente, aberto às novas experiências da linguagem, mas também um pouco conservador, pois o que eu admirava aos vinte anos – uma estética capaz de romper com a lógica da linguagem – já não me emociona mais.

Estou, assim, sempre em busca de boas histórias, do passado ou do presente, ainda que, para este leitor compulsivo, tudo seja presente, pois a leitura tem, dentre outras qualidades, essa capacidade de reinaugurar o tempo, reinstalar os acontecimentos, recuperar a ficção esquecida em algumas páginas amareladas e trazê-la para o agora, como nestes dias, quando tenho reencontrado Julien Sorel e, também, admoestado Stendhal por deixar sobre o genuflexório da igreja de Verrières o papel rasgado em que se lê o começo de uma notícia sobre a execução de um certo Louis Jenrel: um chiste desnecessário, um recurso literário menor em uma grande obra... Enfim, uma pequena implicância minha, uma de muitas idiossincrasias.

Mas tenho lido várias coisas, algumas delas decepcionantes, como O livro das ilusões, de Paul Auster, e outras que me agradam muito, como dois autores inéditos – no sentido de não serem publicados em livro –, com estilos completamente diferentes, mas cujos trabalhos são pequenos universos que bastam a si mesmos e que me ofereceram aquela sensação de completude que nasce dos textos que mesclam, na medida certa, literariedade (um conceito realmente intuitivo, concordo), linguagem apurada, concisão e um tema que, mesmo sendo aparentemente superficial, acaba revelando, nas mãos de um bom escritor, possibilidades inusitadas. E talvez essa seja a tarefa do escritor: extrair a loucura dos fatos banais, ou os interstícios que, quase sempre, nos passam desapercebidos.

Beatriz Mecozzi e Saint-Clair Stockler conseguem cumprir essa perigosa e difícil tarefa.

No site de Beatriz, na seção Rêverie, aqueles pequenos poemas em prosa não se resumem a flashes do cotidiano, mas transcendem o dia-a-dia caótico dos grandes centros urbanos, transformando-se em espelhos das relações humanas que continuam a ocorrer sob o nosso olhar entorpecido pelos outdoors. Cada uma daquelas pequenas histórias é o grito de alerta de quem quer salvar o que ainda há de humano na cidade desgovernada. Cada um daqueles pequenos textos é uma tentativa de reconstruir a parcela de humanidade que perdemos a cada investida da cidade. Beatriz pinça um momento, ergue-o diante de nós, despe-o da correria, do barulho, do fedor e da indiferença, e oferece-nos a vida em seu estado mais puro, mais simples, mais essencial.

A escrita de Saint-Clair é diversa. No conto Bicicletas, por exemplo, somos levados para dentro de um intrincado episódio, no qual emergimos do sono não para retornar ao real, mas para naufragarmos no delírio. A trama se oferece de maneira despretensiosa, mas, pouco a pouco, somos envolvidos em um longuíssimo parágrafo, cujo torvelinho de suposições nos remete a um mundo no qual sonho e realidade são indistinguíveis. O texto se desencadeia a partir do simples ato de escutar, aprisionando-nos, finalmente, em um quimérico labirinto, em um pesadelo, em uma barafunda de ruídos que nos enlouquecem.

Ler Beatriz Mecozzi e Saint-Clair Stockler é conhecer mundos díspares, talvez até mesmo opostos – e que nos completam. Eles nos levam para algum ponto além da experiência estética, do qual retornamos melhores do que quando partimos.
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Rodrigo Gurgel é crítico literário.


Fonte: http://rodrigogurgel.blogspot.com/2004_06_01_rodrigogurgel_archive.html


[Publicado originalmente em Junho de 2004]