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terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Caio Fernando Abreu


Ler – e falar – de Caio Fernando Abreu é ao mesmo tempo uma experiência dolorosa e prazerosa. Dolorosa porque implica em a gente se olhar sem ilusões num espelho que não nos é nem um pouco gentil. Prazerosa porque apesar disso e, talvez, justamente por isso, voltamos desse mergulho mais antenados com aquelas forças estranhas e obscuras que nos governam e às nossas risíveis paixões. Caio é um desbravador desse lado oculto que todos temos e que, por mais que neguemos, vai sempre nos acompanhar pela vida como uma sombra. Caio é o bruxo que nos diz: “Eis como vocês são. Apesar do verniz de civilização e civilidade, apesar dos celulares, dos computadores, das viagens á Europa. Apesas das confortáveis poltronas de couro e de suas falas repletas de palavras estrangeiras, no final, vocês são nada mais que animais, presas de seus impulsos e instintos mais básicos.”

Em Caio a carne fala, o que não é uma experiência reconfortante para os espíritos menos acostumados às cruezas da vida. Seus personagens, como os de Os sobreviventes, estão bem cientes disso. Há ao mesmo tempo uma força íntima neles que os força em busca do “bem”, do que há de puro ou divino na condição humana, e essa voz, escura e sombria, que lhes fala continuamente de que somos todos formados do barro. E, parece, de um barro ruim. Dessa luta entre o divino e o demoníaco é que surge, como uma benção, os momentos de beleza do texto. Porque apesar de tanta podridão, de tanto veneno, de tanto mofo, Caio é um dos mais belos textos da ficção brasileira de todos os tempos. Ler Caio é saber que no podre há o belo. Saber que no belo há o belo é simples. Difícil é fazer como Caio, que nos mostrou essa outra possibilidade continuamente ao longo das décadas em que escreveu seus textos enfeitiçantes. Seus personagens caem, chafurdam na lama, são capazes dos gestos mais grotescos, fodem e são fodidos, mas fica neles sempre algo de belo que um olhar mais atento detecta numa frase aparentemente banal, entre as outras, ou numa imagem que de repente clareia tudo e percebemos o quanto são humanos eles. Como nós.

“Tem coisa mais destrutiva que insistir sem fé nenhuma?”, pergunta um personagem do conto Os sobreviventes a certa altura. Essa frase pode ser uma das chaves para entender os textos e os personagens de Caio. Apesar de tudo, e até mesmo contra si próprios, eles prosseguem sem fé nenhuma. E justamente essa falta de fé, essa desilusão, permite que eles se vejam sem enfeites. Não há na visão de si mesmos nenhum desses penduricalhos ilusórios – bondade, amor, família, honra, pátria, Deus – que gostamos de ver em nós, para nos sentirmos embalados. Seus personagens não se ninam, não se embalam para sonhar. Eles riem o riso mais cruel: de si, dos outros. Falam sem arreios de seus defeitos, seus venenos, sua decadência. São desprezíveis e sabem disso. Filho das Flores, um dia descobriram que o sonho havia acabado. Sobrou de tudo apenas aquele gosto de morangos apodrecidos, que agora carregam na boca. Yuppies, não conseguem atenuar nem com drogas a lucidez terrível de que são acometidos e que é produto desse despertar súbito num mundo em que o dinheiro é a única voz.

Não é, há que se repetir, uma experiência fácil ler Caio. Seu texto exige demais de nós. Acostumados ao conforto dos textos bem-comportados, pode-se estranhar esse mundo estrangeiro em que se mergulha como num pesadelo. É preciso primeiro beber dessa loucura, aceitar que ela existe desde sempre em nós, reconhecer isto. Depois então tudo pode ficar um pouco mais fácil. Mas sem primeiro reconhecer, como fez Marguerite Yourcenar, que “todo ser que viveu a aventura humana sou eu”; sem perceber desde o início que o que vemos é nós também, ou pelo menos perceber que se não é, poderia muito bem ser, a viagem ao coração selvagem dos textos de Caio fica impossível. Há obstáculos espinhosos que contribuem para dissuadir aqueles que se sentirem instigados por certa curiosidade. Um deles: literatura gay. Aposto quase obrigatório, parece, quando se fala de Caio Fernando Abreu. O viajante pode se sentir assustado com essa perspectiva: o que tenho eu a ver com isso? Nada, se não reconhecermos a validade das palavras de Mme. Yourcenar. Tudo, se percebermos o grão de verdade que existe nelas. Como sempre, ver depende da nossa escolha. Gay ou não – não vou entrar aqui no mérito dessa questão que me irrita tanto – é uma literatura para seres humanos. E se soubermos pular esses ridículos rótulos que não levam a nada, apenas afastam, poderemos nos descobrir nos textos desse cara que morreu ainda jovem e com tanto pra dizer.
Sinto sua falta.